terça-feira, 15 de junho de 2021

Abismo





















"Nem consigo ver os carros das equipes principais. 

A diferença chega a 2,5 segundos."

Carlos Sainz Jr. (em 2017, ainda piloto da Toro Rosso)

Fiquei pensando sobre a declaração do piloto espanhol.

Sobre a diferença.

Houve uma grande mudança no regulamento de 2016 para 2017.

O objetivo era embaralhar um pouco as cartas e trazer uma disputa maior
para a Fórmula 1.

Mas há limitações.

Pois a tendência é continuar a briga por vitórias apenas entre as grandes 
equipes.

A palavra certa seria disposição natural de se manter tudo mais ou menos
como está.

A razão é que a corrida armamentista não permite que as pequenas clientes
possam brigar de igual para igual com os times de fábrica.

Diria que é impossível.

Além da desvantagem de não poderem construir um chassi completamente
integrado com a unidade de força, as escuderias menores precisam lidar
com um gigante ainda maior: o desenvolvimento contínuo.

Que fique claro, não é fácil nem para as grandes.

Daí testemunharmos apenas duas equipes lutando pela vitória.

Ou, pior, uma só.

Não é difícil entender.

O projeto de um carro de Fórmula 1 é iniciado do zero.

Com a construção e destruição de centenas (milhares?) de protótipos na busca
por um conceito imbatível.

As áreas de engenharia e de tecnologia tentam descobrir o pulo do gato nas linhas
do regulamento.

Pensou no custo?

A FIA também.

Para tentar equilibrar o jogo, a entidade limita a capacidade de processamento
dos computadores usada em cada simulação aerodinâmica.

E ainda obriga a usar somente CPUs que possuem funções mais gerais ao invés
de GPUs específicas para funções gráficas.

Claro, não estou tentando dar uma de expert em informática.

Somente demonstrando os curiosos emaranhados do regulamento.

Mesmo assim as maiores escuderias conseguem investir de forma que outros
aspectos do sistema sejam otimizados.

O que acaba causando diferença no desempenho apesar das leis.

Outra coisa regularizada é a utilização do túnel de vento.

Hoje, pela regra, só pode ser ligado durante 25 horas semanais.

Quando a coisa era liberada, os times não desligavam em momento algum.

Chegando ao absurdo da Williams construir dois tuneis de vento em Oxfordshire,
um para modelos em escala e outro para bólidos em tamanho natural.

A solução atual envolve a CFD (Computational Fluid Dynamics) que nada mais
é do que a ferramenta digital que permite analisar diversas situações para ajudar
a resolver problemas do fluxo de fluidos.

Simular no computador.

A integração desses diversos setores é um dos maiores segredos do sucesso
dentro da categoria máxima do automobilismo.

A altíssima tecnologia envolvida acaba criando parcerias entre os times e marcas
como Microsoft, Boeing e Siemens para suprir as necessidades criadas.

Por isso vemos com facilidade nomes assim estampados nos carros.

Para dar chance para a menores ainda há muitas restrições de testes, principalmente
quando se fala em chassi.

Entretanto há uma terra sem lei quando o assunto é sobre software de fabricação
e teste de peças para definir sua eficiência.

O que segundo alguns especialistas, foi uma das áreas em que a Ferrari mais investiu
nos últimos meses.

E colhe os frutos.

A fabricação de peças é uma parte muito sensível.

As partes de metal são até fáceis de serem criadas.

O problema mesmo são as de fibra de carbono.

Aí a coisa muda de figura.

Pois uma peça pode levar mais de cinco dias pra ser finalizada num procedimento
normal.

Caso uma equipe não tenha uma dessas para reposição no box durante um final
de semana de GP, o time precisa buscar na fábrica no tempo certo de maneira
que esteja montada no carro e pronta para ir para a pista.

Essa logística envolve custos altíssimos.

Não são todos que possuem um avião à disposição.

Vale notar que mesmo sendo adversárias, as escuderias se ajudam e muitas vezes
umas trazem equipamentos para outras num momento de aperto.

Carona mesmo!

Uma grande equipe conta com mil funcionários.

Sendo que apenas sessenta podem estar num GP.

A transmissão de dados entre a sede e o box é importantíssima.

Lembro de Vettel exaltando os membros da Ferrari por sua vitória na Austrália
(2017).

"Grande ragazzi, questa è per noi. Questa è per Maranello."

Sim.

A conquista foi dividida com o quartel-general.

Porque a velocidade com que esses dados são interpretados para elaborar uma
estratégia é equivalente a habilidade do piloto.

Mais.

Os trezentos sensores que um Fórmula 1 carrega produzem bilhões de dados
que aguardam ser decifrados para se tornarem melhorias a serem aplicadas na
prova seguinte.

Como decifrar tal quebra-cabeça?

Estamos perante outra parte importante que não existe sequer uma linha no
regulamento.

Portanto as equipes podem usar um poder ilimitado para esclarecer as informações
coletadas.

E com certeza criar um modelo ideal de compreensão para tal tarefa envolve milhões
de dólares.

Repare que alguns territórios escassos de regulamentação ajudam a ampliar 
a diferença entre as grandes e as pequenas equipes.

Existem outros que poderiam ser listados, claro.

(como ter poder econômico para poder contar com os melhores pilotos)

Olhando este cenário, fico impressionado de que o abismo não seja ainda maior.

Outra frase de Carlos Sainz Jr. (quando percebe sua impotência) resume bem tudo
isso.

"São outra categoria."

São mesmo.


13 comentários:

Danilo Silva disse...

Aí sim, um post sobre os custos! Valeu! Pra bancar tudo isso que serve Stroll (kkkkkkkkkkkk - Bahrein é a chance de ouro dele calar todo mundo...)

Tuta disse...

Que post! Belo trabalho, gurizinho.

Tuta disse...

O melhor do teu conteúdo (e pensamento, obviamente) é que vai além.

Speeder76 disse...

Bem explicado. De uma certa forma, é a eterna busca por aquilo que o Mark Donohue falou - e escreveu um livro sobre: "The Unfair Advantage" (A Vantagem injusta). Aquela coisa que faz com que, durante umas corridas, tenhas algo do qual destruas a concorrência antes desta reagir. Acontece desde o inicio dos tempos. Só que, claro, tem a parte má: os custos crescem imenso.

Contudo, daquilo que vi no Bahrein é isto: no meio do pelotão, a briga vai ser muito grande. Uma corrida, podem estar na Q3, noutra, nem passam da Q1. E podem nem ter problemas. E a diferença entre o primeiro e o 15º - Fernando Alonso - não passou de 1,2 segundos. E baixo.

Daniel Chagas disse...

Não apenas os custos, mas tbm a mediocridade da Williams para justificar um Stroll em um de seus carros...

Plinio disse...

Bottas me surpreendeu. Tomara que se intrometa mais vezes na briga entre Vettel e Hamilton.

Társio disse...

Corradi,

Tenho uma curiosidade: não tenho grande conhecimento a respeito, mas em termos de construção de peças - principalmente as aerodinamicas - em impressoras 3D?

Valeu
Abç
Tarsio

Társio disse...

Ah, e esqueci de dizer. Que beleza este post! Muito bom!!

Humberto Corradi disse...

Társio

Boa pergunta. É uma tecnologia nova dentro da F1 e a McLaren parece ser uma das primeiras a ter adotado (vi algumas imagens dos pedais.

Valeu

Maycon Tavares disse...

Poxa Corradi, é a primeira vez que comento aqui, mas precisava dizer que realmente sinto muita falta de suas postagens! Adoro ler seu blog e ver uma visão completamente diferente do que vejo por aí! Espero que um dia volte a postar! Um grande abraço!

Davi de Oliveira disse...

Corradi que post incrível, parabéns pelo nível de detalhamento.
Os últimos anos na F1 tem caminhado pra um aumento na diferença entre as equipes mto grandes, e sinto q a FIA tem feito pouco pra pelo menos diminuir essas diferenças.
E acho q alguns meios deviam ser colocados em prática visando essa diminuição. Eu gostava bastante da regra dos anos 2000 q permitia as equipes abaixo do 4º lugar no mundial de construtores pudessem levar um carro extra pros treinos de sexta, e acredito q poderia ser uma alternativa válida hj em dia, pois traria mais pilotos com feedbacks diferentes, geraria mais dados pras equipes menores analisarem, permitiria mais patrocinadores entrarem nas equipes pequenas, e quem sabe até parcerias das grandes visando desenvolvimento de pilotos.

Abração

Humberto Corradi disse...

Agradeço o incentivo.

Valeu

Unknown disse...

Bom dia Corradi,

Parabéns pelo artigo !

Acredito que se a Fórmula 1 adotasse o mesmo sistema de concessões da MotoGP, (ainda em 2016, que permitiu a ascensão de Suzuki, KTM e Ducati) teria mais sucesso do que usar limite de gastos. Fazendo uma pesquisa rápida funciona assim:

“ Uma vitória vale três pontos de concessão, um segundo lugar dois e um terceiro um – permitindo que as equipes que alcançam o sucesso se beneficindo das concessões percam suas vantagens progressivamente. “

O sistema no qual as fabricantes que não vencem desde o começo de 2013 ganham subsídios de combustível, testes e uso dos pneus – benefícios que Ducati e Suzuki recebem atualmente – será mantido, mas ajustado para se tornar um sistema de “concessão de pontos”.


O teto orçamentário, acredito que seja um sistema que ajude apenas as equipes grandes. Haja visto que, com a enorme estrutura já consigam vantagens já no início da temporada, enquanto as pequenas teriam um ano inteiro pela frente para chegar no limite. Dificultando o desenvolvimento do carro para o ano seguinte e favorecendo de novo as maiores equipes.

Lawerence Stroll neste caso foi esperto. Já abraçou a Cognizant (desenvolvedora de software), para provavelmente desenvolver a ciência de dados de forma terceirizada. Olho neles !

Grande abraço.